
por Marcella Marx
Me lembro da cena transparente, como se tivesse ocorrido ontem. Tão simples e confortante como o derramar da mão dentro de um pote de ervilhas. Nós dois e nossa importante tarefa daquele dia: podar as folhas de toda cerca viva que rodeava o conjunto de casas. Com tesouras pesadas e também um tanto desafiadas fazíamos aquele delicioso movimento repetitivo. Era só o tilintar das lâminas e o cheiro gostoso de mato recém abatido. Estranho como estes cheiros ficam impressos e despertam rápido e sem porquê. Sei que ficamos horas embalando nossa conversa ao navalhar das tesouras, sem pressa. Conversamos sobre como a vida ali fazia muitas coisas perderem seu valor costumeiro e outras ganharem nova estima. Coisas como fazer o que nunca se imaginou fazendo. E ele riu quando eu disse que no dia anterior havia passado a manhã sobre uma montanha de estrume e que não mais demorava horas para me trocar pois só tinha dois pares de calça. Apesar do meu universo ser tão diferente do dele o som do abrir e fechar das tesouras nos colocava frente a frente. No geral, falei muito mais de mim e ele me ouvia sem qualquer exigência. Foi daquelas conversas que acontecem poucas vezes e te deixam refletindo para o resto da vida.