
por Clarice Casado
“Viveremos uma era em que a liberdade de pensamento será de início um pecado mortal
e mais tarde uma abstração sem sentido”.
(George Orwell)
“Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força“.
(lema do “Partido Único”, descrito no romance 1984, de George Orwell)
No ano de 2002, li pela primeira vez a masterpiece de George Orwell, o romance 1984. Em sua fantástica, pessimista e visionária odisseia, Orwell imagina e descreve um mundo vigiado por uma força enigmática e superior chamada de Big Brother. Nos lares, nas ruas e em locais de trabalho, os indivíduos são constantemente vigiados e têm todos seus movimentos gravados por câmeras sinistras, espécies de telas de televisão, que são a mais pura representatação do totalitarismo cego e desrespeitador das liberdades individuais. Pelas ruas da fictícia e opressiva Oceânia, lê-se cartazes com o aviso “Big Brother is watching you (O Grande Irmão está lhe vigiando)”.
Na época daquela minha primeira leitura, fiquei muito chocada e impressionada com a narrativa de Orwell. Tudo me pareceu genialmente fantasioso, e eu não conseguia imaginar, de jeito nenhum, que algum povo pudesse, algum dia, sofrer com algo parecido. Engano meu. Grande engano. Orwell de fato antecipou o futuro, em uma época em que nem de perto se sonhava com a ideia de um mundo virtual. O romance profético foi concluído em 1948, no pós-Segunda Guerra Mundial, e quis apontar todos os sofrimentos da guerra, representados pelo nazismo e outros movimentos autoritários; pela tortura e pelos abusos intelectuais e físicos praticados naquele sinistro período da história da Humanidade.
Pois, então, leitores, esta cronista que vos fala quer dizer-lhes hoje que nós, o povo do planeta Terra, estamos passando por um fenômeno que se assemelha muito ao do olho impiedoso descrito em 1984: nosso Big Brother tem nome, e este nome é Facebook.
Atualmente, o que não está no “Face”, não está no mundo. Confesso que tive um longo período de paixão pela rede social mais acessada do planeta, e hoje o que vejo lá me assusta, me choca, me impressiona, como me impressionou o romance de Orwell em 2002. O Facebook representa hoje, em minha opinião, um olho gigante, crítico, maldoso, raivoso, manipulador, ignorante e sem limites. Nada que ali é manifestado passa ileso. Tudo o que se publica – opiniões, ações, ideias, rotinas – tudo, enfim, é constantemente vigiado (e punido!) pelo sem número de “amigos” que uma criatura consegue ter naquela rede social. A diferença entre o Facebook e o Big Brother de Orwell é que no Facebook os próprios indivíduos vigiam uns aos outros, não havendo apenas uma entidade totalitária e manipuladora, representada pelo governo, mas várias, nós mesmos, seus usuários.
Para mim, o Facebook começou como uma ferramenta interessante e útil para aproximar amigos e família, para publicar fotos de bons momentos, para dividir boa música e bons textos, para espalhar e divulgar cultura, eventos, notícias e entretenimento de qualidade. O que vejo, nos últimos tempos, é muita gente com ódio e raiva de tudo, intolerância e desrespeito às ideias e opiniões alheias; pessoas que não se preocupam mais com a fonte e com a acuidade das informações que veiculam irresponsavelmente a cada segundo, minuto, hora, dia após dia, sem cansar. É uma guerra virtual constante, ignorante e cansativa, uma guerra verbal totalmente despreocupada com o conhecimento e com fatos verdadeiros. Só se quer veicular montanhas de informações desconexas e desencontradas, que se transformam em uma avalanche de bobagens incongruentes e absurdas. Parece-me que o Facebook começou como um grande e belo muro branco, pronto a receber bonitas imagens, pinturas e poemas, e agora é uma parede horrorosa e suja, pichada de cima a baixo com palavras de baixo calão e imagens sombrias e de mau gosto.
Raras são as pessoas que ainda postam textos, vídeos e música de qualidade. Eu tenho a sorte de ainda ter alguns amigos (verdadeiros e virtuais) que de fato entendem a diferença entre conhecimento e informação. Informação é efêmera; se desfaz rapidamente e é, muitas vezes, mal escrita e enganosa. O conhecimento, pelo contrário, é duradouro, permanece; é comprometido com a verdade – nunca absoluta – mas sempre profundamente pesquisada e embasada. Tenho a nítida impressão de que o conhecimento, da maneira que o conhecemos, está agonizando, está com os dias contados. Está próximo da morte. Infelizmente, temos todas as armas para matá-lo aos pouquinhos, para sufocá-lo por uma enxurrada de informações fúteis, tolas e inúteis, frutos da horrorosa capacidade humana de gastar seu tempo precioso com a interferência totalitária na vida alheia. Se continuarmos a agir como meros repetidores de informações irresponsáveis, mentirosas e desencontradas, acabaremos com a única coisa que de fato tem (ou deveria ter) importância em nossas humildes e passageiras existências sobre a Terra: a capacidade de estudar, pesquisar e pensar sábia e livremente, no sentido de construir verdadeiro e profundo conhecimento, de nós mesmos, e de tudo que nos rodeia. Conhecimento este que deveria permanecer bem vivo para as próximas gerações.