
por Clarice Casado
E se eu pudesse ler melhor a alma, seriam todas as possibilidades infinitas?
E se os cheiros não me perturbassem tanto, faria eu, ainda assim, belos poemas?
E se o frio nunca fosse embora, deixaria eu de adivinhar o futuro?
E se as pessoas pudessem ser dobradas como papel, virando belos origamis, entenderíamos o sentido da existência?
E se os crepúsculos durassem o dia todo, banhando de luz e cor o cinza que nos habita, seria a vida menos real?
E se eu falasse tudo o que penso e sinto, sem ter medo de mim mesma, ou de qualquer consequência, poderia contar sempre com os mesmos companheiros?
E se as crianças nunca crescessem, seriam as cidades todas de algodão doce, chocolates e balas, como na história de João e Maria?
E se os dias começassem sempre à tarde, teríamos menos preocupações?
E se os anjos de fato estivessem sempre nos sussurrando segredos, como nas Asas do Desejo de Wim Wenders, saberia eu todas as respostas?
E se pudéssemos ver o mar toda vez que a aflição vem fazer ninho em nossa mente, deixaríamos que nos invadisse por inteiro, lavando tudo que há de mais importuno?
E se o passado nunca nos assombrasse, tal qual punhal pontiagudo, seríamos capazes de surpreender o futuro?
E se amor e a amizade não fossem infinitos enquanto durassem, como diz Vinicius, mas fossem infinitos como na matemática, poderíamos compreender melhor as razões e não-razões que nos assolam?
E se minhas indagações mais doloridas nunca tivessem resposta, saberia eu viver sem escrever?
E se eu pudesse ser feliz todos os dias, seria eu feliz todos os dias?
E se eu tivesse a solução para todos os males do espírito, todas as mazelas e dores psíquicas, provaria eu deste remédio?
E se o conteúdo das entrelinhas pudesse ser lido claramente, como os versos dos mais misteriosos poemas, teríamos coragem de encarar uns aos outros?
E se eu iniciasse este poema outra vez, deixariam os “se” que aqui ora habitam de viver no mundo das meras possibilidades?